sexta-feira, 19 de abril de 2019

Primeiros habitantes




Fig. 1: Tupinambá a caminho da escola. Foto: Geraldo Seara.

Havia uma coisa que a primeira professora do lugar onde nasci não sabia. E se soubesse, teria procedido de um outro modo. É que sua escola ficava muito próxima da zona rural da cidade de Camacã e, com frequência, era visitada por alguns indígenas locais. E mesmo que estes não fizessem nada e também que nada dissessem, causava medo. Esse medo era provocado pelas histórias dos colonizadores que sempre mostravam os indígenas como selvagens e perigosos. Eles entravam na sala de aula e, ao contrário do que se esperava que acontecesse, eles apenas ficavam parados, observando. Mesmo assim, a professora lhes oferecia doces e presentinhos, de tanto medo que sentia. E eles voltavam sempre. 

Recorri aos relatos orais de parentes da professora, que, por sua vez, escutaram de seus pais, de seus avós. E cada vez que ouço as narrativas, tenho mais certeza de que não era atrás de doces e presentes que os indígenas retornavam àquela escola. Eles queriam aprender mais e sabiam, por observação, que ali era lugar de se fazerem iguais. Se soubesse – e pudesse –, aquela professora os teria incluído, de tão atentos que eram à mágica dos riscos no quadro de giz, que faziam as crianças entoar vogais, sílabas e versos, o que os deixava maravilhados. Certamente, era isso que buscavam.

Esses kamakã, talvez, tivessem como inspiração o indígena que tinha se tornado muito conhecido na região por sua luta pela recuperação das terras invadidas, principalmente no tempo da expansão da lavoura cacaueira. Esse outro indígena, conhecido como Caboclo Marcellino, sabia ler e escrever e, além disso, era eleitor. Isso, segundo a imprensa da década de 1930 e seguintes, fazia dele um aproveitador da ingenuidade indígena. Era clara a intenção de desqualificá-lo como liderança, imputando-lhe, inclusive, crimes hediondos, os quais nunca foram comprovados. Mesmo assim, foi preso e torturado. Seu paradeiro, até hoje ninguém sabe.

Fig. 2: Reportagem de 03/11/1930 sobre primeira prisão de Marcellino.

Em 19 de abril de 2018, o Caboclo Marcellino foi absolvido de todas as acusações, no 3º Júri Simulado, promovido pela Defensoria Pública da Bahia. Isso teve grande significado para os Tupinambá de Olivença, que têm lutado para que seja conhecida a história real desse grande herói dos povos indígenas. No site da Defensoria, estão postas as palavras da diretora da Escola Superior DPA/Bahia, Firmiane Venâncio, quando disse que “esse julgamento foi muito representativo, até porque o Brasil vive um problema, que é a criminalização das lideranças dos povos indígenas, negros, dos movimentos sociais. É importante conhecer esses personagens para sabermos por que que a gente errou nesse ponto da história que vivemos hoje”. 

Fig. 3: Júri simulado, promovido pela Defensoria Pública da Bahia, em 2018.
"Julgo improcedente a ação penal movida contra Marcelino José Alves, índio caboclo Marcelino, absolvendo-o de todos os crimes que lhe foram atribuídos na denúncia” – sentenciou o simbólico Egrégio Tribunal do Júri. In: Defensoria Pública. Foto: Defensoria Pública.


Em 2014, o Instituto Anísio Teixeira enviou à Escola Estadual Tupinambá de Olivença o do Curso de Interpretação e Produção de Vídeos Estudantis. Em duas semanas, a comunidade escolar indígena se empenhou na aquisição e prática de conhecimentos técnicos da arte de interpretar e de fazer registros em vídeo. Quando da escolha do roteiro a ser gravado, não pensaram duas vezes: indicaram o Caboclo Marcellino como tema para a produção audiovisual. Assim, o livro escrito por Katu Tupinambá e Casé Angatu foi transposto para a tela, tendo, como atores, a comunidade escolar indígena, que se revezaram nos bastidores como produtores, cinegrafistas, continuístas, aderecistas e maquiadores, etc.

Fig. 4: Professor Nildson B. Veloso, de branco,
dirigindo uma cena de Caboclo Marcellino. Foto: Geraldo Seara.

Durante as aulas, ensaios e gravações, houve momentos para reflexões e identificação da velha fórmula de sempre: desqualificar para neutralizar; desinformar para confundir e dominar; martelar a mesma informação falsa para influenciar. Ao longo dos séculos, em toda parte, a depender dos interesses, o padrão se repete. Foi assim também quase dois mil anos atrás...
Assista ao documentário sobre a formação:



Que não seja apenas este dia dedicado aos primeiros habitantes desta terra. 


Geraldo Seara
Professor da Rede Pública Estadual de Educação da Bahia


Saiba mais:
Composição do estudante indígena Juninho Tupinambá contra o preconceito:
Preconceito Não!


Série Faça Acontecer:
Ana Beatriz, estudante Tuxá, premiada no FACE 2011.



REFERÊNCIAS
Júri Smulado realizado pela Defensoria Pública da Bahia: http://defensoria.ba.def.br/arquivo/noticias/ilheus-juri-simulado-da-defensoria-absolve-o-indio-caboclo-marcelino-de-todas-as-acusacoes
 
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